domingo, fevereiro 8

uníssono

Ora bem, cá vai disto.

A vida melhorou muito nos últimos tempos. Mais, para dizer melhor. Desde a última vez que escrevi, já andei mais 800km e muitas vidas. Depois de Mendoza, entre amigos de hostal e camping com assado (o famosos churrasco argentino, que nos foi devidamente cozinhado por locais, no meio de um cenário idilico em rio dancante), fizemo-nos à estrada, rumo a Córdoba. Doze horitas de autocarro, metade passadas a ouvir música maravilhosa e histórias sonoras (gravadas pelo Carlo, que tem um gravador incrível onde ficam para sempre memórias escutáveis dos lugares por onde passa) em orelha compartida, a outra metade a dormir contorcida e em modo caïmbra. Ossos doridos do ofício, felicidade de quem corre por gosto e nao há modo de cansar. Chegámos. No hostal, os hospedes vizinhos eram quase todos israelitas, o que em certas coisas é um óptimo presságio. :) Depressa nos fizemos de casa. Há-que especificar que ando a viajar com um italiano cara de pau que toca trompete e se mete com todo a gente num idioma particular e com um humor desarmante que conquista a mais fechada das almas. Só vendo. Aos que insistem em perguntar se somos um casal, desistimos da resposta inicial em dizer que somos "apenas" amigos e passei a responder: "no. es mi perro."

Na primeira noite na cidade, estamos alegremente a passear pela praca e "reconhecemos" sentados dois tipos que cumprimentámo-nos com um olhar cúmplice e sorriso aberto, como seres da mesma tribo tendem a fazer. Passados minutos, sentamo-nos perto deles, a ouvir o que tocava guitarra com uma voz de anciano vivido que derrama a alma pela voz. Incrível sonoridade, apenas um sinal da quantidade de excelentes músicos que íamos encontrar pelo caminho. A intimidade foi imediada mas comedida, até ao momento em que nos pergunta o signo maia. De aí a estarmos a cozinhar na cozinha do espaco que lhe empresta um amigo aquando da sua passagem por Córdoba, foi um dia. No músico, Juan Canay, encontrei uma especie de mestre amigo e sem necessidade de nenhum desses titulos para ambos o sabermos. Um homem, já avô, que trabalhou anos em jornalismo de rádio, televisao e jornais, que gravou três discos, que viveu em nao sei quantos sitios e deu todas as voltas de satisfacao do ego pela via laboral e material, e decidiu, há oito anos atrás, vender a sua casa, ter uma conversa com os seus filhos, já adultos, e partir. Deixou para trás todo o conforto e buscas exteriores para se conectar com o mundo, com o tempo e com ele mesmo. Vive dos nao-acasos do universo, e diz nunca o terem deixado mal. É também artesao, músico exímio e senhor de runas, estudioso de i-ching e seguidor fiel da sabedoria maia. E para mim, um nao-acaso pontualíssimo.

Apesar de já nos sentirmos em casa, o objectivo de Córdoba era rumar a Cosquín, a duas horas da cidade, para irmos ao tal festival de folklore, que pensei ser "boring". Havia que ir. O que nao contávamos era que o Juan nos fosse indicar o lugar onde ir, mal chegassemos: a casa da Piri. Como explicar? A casa da Piri é o lugar onde há sempre músicos e músicas e onde todos vêm bater depois da noite acabar e o dia apenas comecar. É na verdade, um quarto, uma cozinha e um jardim, do mais simples que podem imaginar, mas onde cabe o mundo inteiro. Chegámos e bastou dizer da parte de quem vinhamos para nos conseguir um espacinho no jardim onde montar a tenda. De vizinhos tenda temos cinco, apenas porque nao cabem mais. De partillhadores de espaco, onde soa música de noite, manha e madrugada (é bem conhecido por nao ser o lugar mais apropriado para dormir) temos centenas, que vao rodando consoante o horario e estado de consciencia. De norte a sul, de este a oeste, do Peru à Italia, todos fazem parte do que acontece na casa da Piri. E o mais impressionante, todos músicos incríveis, que mesmo com doze horas de alcool e nenhuma de sono estao sempre no tom certo. Amigos novos, muitos, e na alma uma sensacao de familiariedade francamente comovente. Ali nao se cobra, nao se questiona, nao se pergunta, apenas se é, se partilha e se comparte, trate-se de música, comida ou energia. As últimas três madrugadas foram despertadas por bombos, flautas, violinos, acordeons, guitarras ou vozes cantando músicas que já se entranham em cordobês (só o sotaque cordobês merecia que se lhe dedicasse um texto inteiro), nao havendo outro remédio senao interromper o descanso - seja ele o quao necessario for - e juntar-te à festa.

Quanto ao Festival, dois apontamentos:

O folclore aqui é toda uma outra conversa, tem inumeraveis variacoes - do alternativo ao popular, do litoral ao interior, da chacarena à zamba - e é um acontecimento onde todos os jovens e velhos, sejam engenheiros, médicos ou padeiros, dancam, cantam e vibram; e a cidade inteira - do rio ao club, da praca ao bar, da discoteca à música de rua - vibra com eles.

Os cóoordobses (tentativa de imitar o inimitável e cómico sotaque lento e arrastado) sao uns grandas malucos. A festa aqui "comeca" às onze da noite, o que na realidade significa às quatro da manha, o que na verdade siginifica que se nao dormires nenhum dos dias (e seguires directo para a casa da Piri quando a noite "oficial" acabar), melhor. Tudo bem regado - mas mesmo impressionantemente regado - com cerveja ou com essa mistura incrível que é a Fernet com Coca Cola (sim, a velha Fernet, aqui, é um monumento nacional e eu, que descobri que afinal sabe a propólis, já me habituei a ela) e com muito boa disposicao, música e humor. Quando o calor aperta - pelas duas da tarde, - ok, decide-se que é hora de descansar, o que na verdade significa ir para o rio (lindo lindo lindo) tomar banhos de água deliciosamente morna, fechar os olhos debaixo de uma sombra de árvore, tocar mais música e, de preferência, continuar a beber.

Eu vou fazendo o meu caminho, tranquilo na medida do possível e descansado na medida do impossível. Há uma nova paz interior e muitas gargalhadas a sobrevoar tudo isto. Para que saibam.

Estou Bem.

um grande beijo e um breve até já,

J.

1 comentário:

Nocan Kani disse...

Obrigado amiga!!!
Acabo de encontrar esto buscando "otra cosa" en internet...
Bellísimo relato y muy buen resumen...!!!
Te amo!!!
Juan